Liberdade acentuada

Edward Lucie-Smith, janeiro de 2016

A arte de Vatroslav Kuliš oferece um exemplo de como um estilo de arte, aparentemente universal, pode ser modificado em resposta a diferentes circunstâncias e a condições culturais diversas. Num sentido mais amplo, não há dúvida de que Kuliš pertence à tradição da abstração pictórica que se estabeleceu primeiro na América do Norte e depois, nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, na pintura europeia.

A arte puramente abstrata tinha sido conhecida antes disso, basta lembrar mestresda Arte Moderna como Malevich, Kandinsky e Mondrian. Mas nas obras abstratas do período modernista precoce a ênfase foi dada à criação de formas – o movimento real do pincel tornou-se a força dominante da criação da pintura só após o aparecimento do expressionismo abstrato nos Estados Unidos – especificamente em Nova York, num período em que na Europa grassava a guerra.

Uma das características desse grande movimento artístico, que hoje é considerado tipicamente americano, muitas vezes visto, em meados do século XX, como uma expressão do domínio cultural dos Estados Unidos, acompanhando o seu imenso poder militar e económico, foi destacar a ideia de que a arte é principalmente uma libertação do eu interior.

Essa libertação, de facto, foi uma aquisição através de um processo prolongado. As suas primeiras fases podem ser vistas em algumas obras artísticas produzidas durante o Movimento Romântico do século XIX, embora as emoções violentas da Arte Romântica tenham sido muitas vezes relacionadas com circumstâncias políticas e sociais. Isto pode ser observado numa série de pinturas dos principais artistas franceses e britânicos – aqui pensamos nas obras de Géricault: A Jangada da Medusa (1818-1819), Delacroix: O Massacre de Quios (1824) e J.M.W. Turner: O Navio Negreiro (1840 – dois anos após a abolição da escravatura em todos os territórios britânicos, ela continuava a existir nos Estados Unidos, antiga colónia britânica).

Essa aspiração atingiu uma espécie de culminar com a tela de dimensões gigantescas de Courbet: O Atelier do Pintor – Alegoria Real (1854-1855). A tela revelou o artista, o próprio Courbet, ao mesmo tempo como oponente e igual ao então governante da França, o Imperador Napoleão III.

Vatroslav Kuliš – Lisabon

Na segunda metade do século XIX, a inovação artística avançou numa direção diferente. Após a derrota de França na guerra franco-prussiana (de 1870-1871) e após o colapso do Segundo Império, a arte inovadora tornou-se cada vez mais a expressão de impulsos que existiam no mundo paralelo, fora do domínio da política.

Foram  feitos, ocasionalmente, esforços para tentar mudar isto por artistas pertencentes a vários grupos que, no seu conjunto, construíram o que hoje chamamos de Movimento Moderno, embora o adjetivo “moderno”, hoje, não se aplique mais.

Algumas alianças bizarras foram formadas, como por exemplo, aquela entre o comunismo russo e os principais membros do Movimento Surrealista Internacional, o mais consistente dos movimentos artísticos no período entre as duas Guerras Mundiais e que abrangeu uma grande variedade de nacionalidades. O namoro, mais do lado surrealista do que do lado comunista oficial, nunca foi consumado.

No entanto, os principais surrealistas europeus, pressionados pelas dificuldades da guerra, encontraram, no final, refúgio nos Estados Unidos. O pensamento surrealista, com a sua ênfase em encontrar maneiras de libertar fantasias e instintos gerados no inconsciente, exerceu uma influência importante sobre a evolução do expressionismo abstrato que, em muitos aspectos importantes, pode ser considerado como o sucessor transatlântico do surrealismo.

A ironia é que a arte expressionista abstrata que era, naquela altura, considerada como um produto completamente americano, foi na Europa do pós-guerra, promovida pela CIA, através do Congresso para a Liberdade Cultural, fundado em 1950. O Congresso serviu como um evidente contrapeso ao esquerdismo anti-individualista e autoritário da União Soviética. Embora os artistas que praticaram esse estilo fossem, às vezes, denunciados como “comunistas” por furiosos membros da direita americana, a CIA e os seus muitas vezes imprudentes aliados intelectuais na América e no exterior viram o Expressionismo abstrato como o paradigma absoluto da liberdade, com uma criatividade totalmente libertada – algo completamente oposto ao autoritarismo cultural soviético.

A arte abstrata livremente pintada ainda hoje traz um eco desta atitude, mesmo no território da ex-Jugoslávia, onde nunca houve uma tentativa tão determinada de controlar a expressão artística como existiu até recentemente na própria Rússia e em outros países do bloco soviético. Ao olhar para o trabalho de Kuliš, uma das coisas que se nota imediatamente é a sua marcante liberdade. Ele não obedece a nenhuma regra, e o que, inevitavelmente, ressoa, na consciência de cada um, é um eco das guerras civis que perturbaram esta região da Europa na década de 1990. As pinturas de Kuliš são alegres declarações do direito individual a criar da maneira que o artista o quiser. O seu caráter espontâneo, neste contexto histórico, assume imediatamente conotações políticas e sociais.

A imagem dominante em todas essas obras pode ser interpretada de três formas que não se excluem: como um sol, como uma flor e como um vórtice. Como Leonardo da Vinci destacou no seu conselho aos artistas sobre como criar uma composição figurativa a partir de marcas acidentais manchadas na parede, os seres humanos têm uma compulsão inata para tentar transformar marcas abstratas e símbolos em coisas que o cérebro irá imediatamente reconhecer como imagens que correspondem ao que é conhecido na realidade quotidiana circundante. Artistas, críticos de arte e teóricos do século XX, defensores da Arte Moderna escrita com uma letra maiúscula de advertência, tentaram rejeitar esse impulso, quase sempre em vão. O Quadrado Negro de Malevich, conhecido como o mais radical exemplo da pintura abstrata do século XX, é facilmente lido como uma viúva olhando para um céu noturno. Alguns dos produtos do Movimento de Arte Mínima, do final dos anos 1960 e 1970, como por exemplo a repetição vertical de caixas de Donald Judd, pode, talvez, satisfazer completamente essa ambição de rejeição. O minimalismo marcou, notoriamente, a verdadeira conclusão do Movimento Moderno. Kuliš, no entanto, não pode ser descrito como um artista que abraçou o minimalismo.

De facto, as suas pinturas são melhor lidas se insistirmos em significados específicos, como a celebração alegre da natureza e da existência, celebrações daquela vertigem que a contemplação dos fenómenos naturais às vezes provoca. Alguns dos desenhos de Leonardo sobre o Dilúvio expressam o mesmo sentimento, embora o tom, no seu caso, seja pessimista e não otimista.

No período mais recente da história do pré-modernismo talvez haja um tipo de semelhança com as representações de tempestades de J. M. W. Turner , por exemplo com a sua obra Tempestade de Neve: Aníbal e o seu Exército a Atravessar os Alpes (1812 – Tate Britain, Londres). Assim, Kuliš é um artista moderno no sentido mais verdadeiro do termo, embora no sentido mais paradoxal seja também alguém que está plenamente consciente do seu lugar numa rica tradição.

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